Autor roteirista, redator e criador de conteúdo.
Criador de Vale dos Esquecidos - HBO Original
VISITA ILUSTRE
(Publicado na 4ª capa do caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, em 18/09/2010)
Não deveria ser motivo de espanto, uma vez que o Senhor, como todos sabem, é onipresente. Contudo, Sua aparição ali, em pleno Largo da Carioca, foi o bastante para interromper a terça-feira.

Os camelôs não mais gritaram promoções imperdíveis, e até seus brinquedos made in Taiwan acharam de bom tom descarregar as pilhas. Os bolivianos calaram suas flautas, o que, para muitos, já se configurava num milagre. Aposentados aposentaram as queixas e pararam de gravitar no universo paralelo de netos, agências da Caixa, tabuleiros de damas e dores meteorológicas nas juntas. Até do milho dos pombos esqueceram. Estes, sequer arrulharam em protesto, e tampouco vingaram-se maculando camisas novinhas com os grãos que já haviam processado da véspera. Os malandros desistiram das carteiras que não lhe pertenciam e os homens de uniforme, com quem repartiriam o fruto do trabalho, pouco se importaram. Nenhum cachimbo de crack foi aceso, nenhuma gota de branquinha derramada pro santo. As moscas ignoraram o seboso carrossel de churrasco grego, enquanto coxinhas e joelhos eram largados nos balcões, fossem os das lanchonetes ou os do cinema-poeira ali perto.
De repente, a proximidade do Fim não mais interessava a um solitário arauto de megafone. No outro lado da praça, o pastor de tergal suado abaixava suas escrituras, assim como seu tom de voz. As beatas do Convento de Santo Antônio derrubaram seus pãezinhos. Naquela tarde, não haveria quem oferecesse ou pedisse esmolas. Deus lhe pague, é o que sempre dizem nessas horas. Mas, apesar da oportunidade única, quem haveria de cobrá-Lo?
Ele andou no meio de nós, no meio da multidão que se abria como antes fizera o Mar Vermelho sob a invocação do Seu nome. O Pai seguiu, sorridente porém firme. Passou por uma banca de filmes piratas e, não fosse onisciente, haveria de se espantar com as capas de algumas produções, digamos, adultas. Da próxima vez, teria mais cuidado com o barro proverbial. Seguindo um pouco mais adiante, afagou o pelo sarnento do animal que mantivera uma patinha içada desde que pressentira, em preto e branco, Sua presença. Curou as chagas de outro tipo de vira-latas, deitado numa colcha de papelão com logotipo de geladeira. Abraçado à garrafa que esvaziara horas atrás, o pobre ser finalmente percebera como haviam sido falsas as suas visões anteriores.
E assim o Todo Poderoso continuou até chegar a uma pequena aglomeração. As bandeiras coloridas e as meninas de perna de fora distribuindo santinhos com a foto de alguém que nunca seria santificado deixaram claro: havia ali um candidato atrás de votos. Ele viera beijando sua cota de bebês desde a Cinelândia, acompanhado daqueles que ainda pleiteariam cargos aos quais não pretendiam comparecer.
- Tu! O que pensas estar fazendo?
Como acontecera com os demais, o candidato e sua corja, digo, cortejo, permaneciam sem forças para responder à inquisidora voz celestial. Um deles, entretanto, não parecia hipnotizado. Era o assessor, marqueteiro e braço direito do político.
- Jeová, a que devo a honra?
- Sempre aprontando das tuas, hein? Desde que caíste do Paraíso tens me causado trabalho.
- Caí ou me jogaram? Bem, depois de tanta eternidade, já não faz diferença. Então, Senhor, o que é que tá pegando?
- Ainda perguntas? Vejo que agora decidiste apoiar políticos.
- Por que não? Eles acabam parando lá embaixo mesmo. Resolvi pular umas etapas, só isso. E olha que, nesse aqui, tô levando fé. Um talento!
Deus puxou seu reflexo invertido pelo braço. Pelo visto teriam uma longa conversa. Pararam num balcão e pediram duas canecas de vinho suave, a que o Senhor tratou de adicionar um terroir mais nobre.
- Exibido - comentou o outro.
Realmente, disse o Arquiteto do Universo, o candidato apoiado pelas trevas o preocupava. Já demonstrara algumas de suas aptidões em mandatos anteriores e, agora, com apoio de cabo eleitoral tão maquiavélico, teria chances de alcançar muito mais poder. Aquele povo, que insistia em que o Senhor era seu conterrâneo, já sofrera tanto. Chuvas, descaso, violência, corrupção. E, apesar de tudo isso, aquela gente ainda encontrava forças para celebrar a vida. Os cariocas definitivamente não mereciam um líder moldado pelo Diabo.
- Mas se são eles mesmos que escolhem - retrucou o Coisa-Ruim. - Prometo por minh’ alma, ou melhor, por todas as que já comprei, que não vou fraudar os resultados, como tantos fazem. Se elegerem um candidato infernal, será responsabilidade deles.
Deus teve de concordar com seu antagonista. Maldita hora que inventara o livre arbítrio!
Ele pagou a conta e, antes de desaparecer, abençoou aquela gente com um pouco de Sua sabedoria infinita.
No coração da cidade, as pessoas voltavam lentamente a seus afazeres e metrôs superlotados. Um pouco mais iluminadas do que o normal, sem entenderem bem o porquê. Claro, ninguém se lembraria do que aconteceu na Carioca. Ninguém além de mim. Mas sou apenas um vira-lata humano, deitado sobre papelão de geladeira. Quem haveria de me escutar?
– – – – – – – – – – – – – – – – –
por Antônio Tibau
O texto acima foi um dos 10 finalistas do concurso “Contos do Rio”, e foi publicado no caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, em 18/09/10. A foto “Nuvem sobre o Largo da Carioca”, de Marcia Foleto, foi escolhida pelos leitores do jornal e serviu de inspiração aos participantes.